Dogville é genial!
"Toda a trama do filme é cuidadosamente montada para mostrar que Dogville
não merece o presente (Grace = graça) que lhe foi dado.
Adalberto Ribeiro
De acolhedores e
altruístas que eram, os habitantes se tornam cruéis, tirânicos,
pervertidos. Até mesmo as crianças".
Recomendo a leitura do texto abaixo, DEPOIS de assistir ao filme. |
Caso o filme acima tenha sido removido, tente AQUI
“Dogville”
é a crítica mais radical da sociedade burguesa já vista no cinema
recente, superando até mesmo “Clube da luta”, de 1998. Esteticamente
mais ousado e tematicamente mais abrangente, o filme de Lars von Trier é
um manifesto de falta de fé na humanidade. Expõe de maneira conseqüente
e articulada um resumo de todas as misérias humanas e as razões de
todos os nossos fracassos. Em “Dogville” não é apenas a sociedade
burguesa estadunidense que fracassa, mas o iluminismo, o humanismo, a
religião, toda a experiência humana, enfim. Não fica pedra sobre pedra.
A
primeira vítima são as convenções estéticas da narrativa
cinematográfica. “Dogville” não é propriamente cinema. É teatro filmado.
A ação se passa sobre um piso negro em que as riscas de giz representam
as paredes das casas. Os atores fingem abrir portas e janelas. Alguns
móveis, árvores, carros completam o cenário. Nomes riscados no chão
indicam o nome do proprietário da casa em quem estamos. Essa ousadia
estética mostra o quanto o cinema pode ser simples e eficiente, desde
que feito com inteligência. Lars von Trier foi um dos signatários do
movimento “Dogma” (uma versão dinamarquesa do “uma idéia na cabeça e uma
câmera na mão” do nosso Cinema Novo dos anos 1960). O Dogma fez
bastante sucesso no circuito europeu de festivais a partir de meados da
década de 1990 e Lars von Trier acabou provando ser o seu mais
competente adepto.
O
teatro de “Dogville” situa-se nos Estados Unidos em plena década de
1930, com a miséria da Depressão e a violência dos gângsteres. Mas
poderia situar-se em qualquer cenário e em qualquer época. A escolha dos
Estados Unidos apenas a torna mais familiar e acessível. O público
internacional de cinema está bastante familiarizado com as instituições e
a cultura típicas de uma cidadezinha estadunidense, portanto se
localiza mais facilmente nesse cenário. A pequena cidade de Dogville é
igual a toda pequena cidade do país. Não há horizontes nessa cidade. Não
se vê o que há além dela. Não se vê o final da estrada, a cidade
vizinha, a paisagem circundante, as montanhas ao redor. Não foi preciso
se dar ao trabalho de pintar figuras da paisagem exterior no cenário.
Não
foi preciso porque nenhuma cidadezinha estadunidense realmente se
preocupa com o mundo exterior. A reação de perplexidade do povo
estadunidense diante do 11 de setembro mostrou o quanto este povo não
compreende o mundo exterior e o que seu país representa nele. Para eles,
o resto do mundo é uma imitação mal-feita de seu país. Os habitantes de
todas as Dogville estadunidenses estão presos ao seu mundo provinciano e
limitado. Presos ao universo de sua “comunidade”. O universo mesquinho
das fofocas, das invejas, dos preconceitos. O julgamento de “Dogville”
se abate sobre toda a humanidade, mas não se trata de um julgamento
abstrato. O réu são os pequenos grupos, bastante concretos e palpáveis,
as famílias e vizinhos, pessoas relacionadas pela proximidade do
trabalho e da convivência. Trata-se de uma cidadezinha, como poderia ser
uma vizinhança de uma grande cidade, um bairro, etc.
O
filme se estrutura em capítulos, ou seja, em atos, como numa peça de
teatro. A divisão em capítulos parece também uma alusão à divisão da
Bíblia em livros. Os
atos da peça são precedidos de um prólogo, no qual os personagens são
apresentados. Dogville parece uma cidadezinha comum, mas tem o seu
intelectual, o aspirante a filósofo e escritor Tom (Paul Bettany). Tom é
o motor da vida social de Dogville. É ele que promove reuniões na
capela da cidade, tentando motivar seus habitantes a se melhorarem
moralmente. É ele que visita todos os habitantes, tentando levar alguma
luz à suas vidas. Todo o filme é de certa forma uma experiência de Tom.
Uma experiência iluminista de reforma moral da sociedade.
Tom
quer reformar a sociedade de Dogville levando-lhes a verdade. Grace
(Nicole Kidman) surge na história para ajudá-lo a provar sua tese. Tom
insistia em que as pessoas não eram verdadeiramente boas e altruístas
para ajudar alguém. Então surge uma mulher misteriosa, perseguida por
gangsteres, precisando de ajuda. Tom desafia a cidade a acolhê-la. Para
não admitir que Tom tem razão em suas censuras, Dogville aceita a mulher
misteriosa. Manter as aparências é fundamental. Todos precisam fingir
que são nobres e respeitáveis, quando na verdade escondem em si as
piores perversões e uma capacidade infinita para a crueldade.
Grace
acaba sendo aceita, a título provisório, mas insiste em que deve
retribuir de alguma forma pela proteção que os habitantes de Dogville
lhe darão. Grace começa a trabalhar diariamente para todos os habitantes
da cidade para mostrar que é uma boa pessoa e provar que merece ficar.
Passado o prazo inicial de duas semanas, Grace é autorizada a ficar. Os
habitantes de Dogville se afeiçoam a ela. Descobrem que seus préstimos
são bastante úteis. Tornam-se seus amigos. O romance entre ela e Tom,
que no entanto não chega a se consumar, acaba sendo o desenvolvimento
mais natural da situação.
Os
problemas surgem quando aparece a polícia para lembrar que Grace
continua sendo procurada. Esse é o teste dos habitantes de Dogville.
Apesar de conviverem com Grace, não conseguem mais deixar de desconfiar
dela. Esse é o trecho do filme mais especificamente relacionado ao
farisaísmo estadunidense. O povo de Dogville não consegue reconhecer a
inocência e a bondade de Grace, por mais que esteja ali diante de seus
olhos. Preferem acreditar no que diz o sistema. A polícia, comprada
pelos poderosos, espalha cartazes de Grace como procurada por assaltos.
O
povo de Dogville tem a prova de que Grace é inocente, pois estava
convivendo com ela quando os assaltos que lhe foram imputados foram
cometidos. Mas essa prova não basta para acalmar suas consciências.
Detectamos aqui um traço típico da obediência orwelliana a um sistema de
poder opressor e injusto, porém eficientemente interiorizado. É preciso
sobretudo estar de bem com a lei. Se a lei diz que Grace é perigosa,
ela se torna perigosa. Por mais que se trate da adorável e pura Grace
que todos conhecem. O amor pela verdade, pela beleza e pela bondade se
desvanece facilmente diante do medo do julgamento público. Ninguém tem
coragem de defender Grace, pois não tem coragem suficiente para viver
uma vida autêntica. Dogville continua mantendo Grace a salvo de seus
perseguidores. Mas o preço para ela em trabalho e sofrimento se torna
cada vez mais alto.
Toda
a trama do filme é cuidadosamente montada para mostrar que Dogville não
merece o presente (Grace=graça) que lhe foi dado. De acolhedores e
altruístas que eram, os habitantes se tornam cruéis, tirânicos,
pervertidos. Até mesmo as crianças. A forma como transitam do
acolhimento amistoso para o abuso sexual é bastante natural e
conseqüente no contexto do filme e perfeitamente representativo do
comportamento concreto do homem. A experiência pedagógica iluminista de
Tom fracassa miseravelmente.
Tom
aparece como o herói, uma espécie de alter-ego do diretor e do
espectador. É sobre ele que carregamos nossas expectativas humanistas e
bem-pensantes de que o bem possa triunfar no filme. Tom acredita em
exemplificação como forma de convencer as pessoas. O exemplo de
“Dogville” acabará sendo mais contundente do que aparentava, pois como
em todo teatro brechtiano, acabará atingindo o espectador.
Tom
não tem propriamente uma profissão. Ele depende da pensão de seu pai, o
que acabará sendo crucial para o andamento da história. O intelectual,
na sociedade burguesa, por mais que seja radicalmente contra o sistema,
não consegue romper integralmente com ele, pois dele depende sua
subsistência material. Sua fidelidade estará com aqueles que lhe
proverem estabilidade, por mais sincero que pareça ser seu amor pela
verdade. Ou seja, também Tom acabará traindo Grace. A delação da jovem
aos gangsteres que a perseguiam é o atestado final de falência do amor e
da honestidade.
Walter
Benjamin dizia que o intelectual é o inimigo natural da condição
pequeno-burguesa, pois deve combatê-la diariamente dentro de si mesmo.
Entretanto, a História mostra que houve mais derrotas do que vitórias
nessa luta. O fracasso de Tom em “Dogville” representa o fracasso de
todo intelectual na sociedade burguesa. O intelectual se mostra, no
final, incapaz de se solidarizar concretamente com os perseguidos, os
humilhados, ofendidos e explorados.
Grace
representa todas essas classes, todos os sofredores, os excluídos do
sistema. As mulheres oprimidas pelo machismo, as crianças oprimidas pela
educação, os estrangeiros oprimidos pela xenofobia, etc. Ela encarna
todos os sofredores, justamente porque encarna o trabalhador. O trabalho
é o elemento constitutivo essencial de toda sociedade. Não se vive sem
trabalho. Ele é a primeira de todas as necessidades. A comunidade de
Dogville aparentemente não precisava de Grace, como a sociedade humana
aparentemente não precisava da Revolução Industrial que criou o
proletariado moderno. Mas depois que o trabalho assalariado foi criado,
não se pode mais viver sem ele. O que não significa que seja valorizado.
Antes, pelo contrário, o trabalhador, como Grace, é cada vez mais
explorado, humilhado e maltratado.
O
trabalhador é o cimento invisível da sociedade. Não se pode viver sem
ele, mas ao mesmo tempo todos o odeiam. O odeiam porque ele nunca parece
dar conta do que se precisa. Odeiam porque ele é diferente. Odeiam
porque ele vem de fora. Odeiam porque ele carrega consigo todas as
precariedades, todas as fragilidades, todos os pecados. Um bode
expiatório que é também o burro de carga e a válvula de escape das
tensões, inclusive sexuais. O trabalhador, na interpretação de Marx, é a
classe revolucionária por excelência justamente porque apenas a sua
libertação pode libertar toda a sociedade da condição abjeta do trabalho
explorado.
Mas
essa leitura é apenas um dos níveis subliminares de “Dogville”. Como
dissemos, trata-se de uma condenação de toda sociedade de classe, que
apenas contingentemente se articula a partir da sociedade burguesa
estadunidense. A condenação se estende a toda a civilização ocidental,
na qual já existe, antes do trabalhador assalariado moderno, um símbolo
universal da redenção, que foi Cristo. Jesus foi aquele cujo sacrifício
teria redimido os pecados da humanidade, por provar que Deus nos ama.
Grace evidentemente representa Cristo (o comentário do companheiro Sergio
me abriu os olhos para essa interpretação). “Dogville” não deixa de ser
uma resposta à pergunta de todos os crentes religiosos: o que
aconteceria se Cristo voltasse a viver entre nós? Provavelmente,
aconteceria o que aconteceu com Grace: seria explorado, humilhado e
maltratado até o limite, para ser finalmente entregue à morte. Grace,
como dissemos, foi delatada por Tom aos gangsteres que a perseguiam.
Mas,
para surpresa geral, o gangster é seu pai. O gangster-mor é Deus. O
diálogo de Grace com seu pai é o diálogo de Cristo com um Deus
nietzscheano. Deus censura Cristo por sua arrogância. Cristo (Grace) se
atreve a ser bom e puro e querer perdoar os homens apesar de toda a
maldade que lhe fizeram. Esse Cristo sempre misericordioso se coloca
assim num nível moral muito superior a toda a humanidade e isso parece
ser inaceitável para Deus. Ou se julgam todos pelo mesmo padrão ou não
haverá justiça. Os homens falharam com Grace e devem ser julgados pelo
que fizeram.
E
eis que Grace acata seu pai e resolve julgar Dogville. Ela dá à cidade o
que merece. A exemplificação pretendida por Tom finalmente atinge o
espectador, como antecipamos. A sentença que Grace aplica a Dogville é a
mesma que nós espectadores proferimos entredentes ao longo do filme.
Ela realiza nosso desejo, ordenando a destruição da cidade. De maneira
mais uma vez desconcertante, a heroína de pureza e santidade realiza o
inverso do que se esperava, porque realiza nosso desejo de vingança
inconfessável.
O
massacre moral a que Grace é submetida nos faz desejar, revoltados,
indignados, cheios de santa ira, que Dogville seja destruída. Somos
forçados a concordar que o mundo somente terá conserto quando todas as
Dogville que o povoam forem destruídas. E ao desejarmos isso,
“Dogville”, o filme, triunfa sobre nós, pois mostra como nosso humanismo
se desfaz facilmente em ódio bárbaro.
Deus
é um gângster que dispõe da vida e da morte das pessoas, como se fossem
cães. No mundo sem transcendência de Dogville, o único sobrevivente é o
cão Moisés. O cão é o último homem, o herdeiro da barbárie, que se
limita a latir para o alto, raivoso.
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